Escrita em forma de Cordel, a poesia João de Deus conta a história de um Cisterneiro que se sente culpado pela morte do pároco de sua cidade, que caiu em um poço que ele estava cavando.
Ocorreu no interior, num vilarejo,
De um caboclo, sem querer, causar a morte
Do vigário da paróquia, um sertanejo
Que, sem perceber o poço, deu má sorte.
O caboclo, João de Deus, ao ter sabido,
Assumiu a autoria, sem ser fraco,
Do que deu motivo ao triste acontecido:
― Fui eu mesmo que cavei o tal buraco!
Cisterneiro desde sempre, o tal coitado,
Com capricho, fez um poço, e fez direito,
Para água limpa dar ao povoado,
Mas não protegeu as bordas do seu feito.
O vigário, sem saber da novidade,
Caminhava bem tranquilo, lendo os Salmos.
Tropeçou e despencou. Calamidade!
E hoje vai ser enterrado a sete palmos.
No velório, João de Deus, inconsolável,
Ouviu vozes lhe atacando a paciência,
Eram um anjo e um diabo miserável,
Que tentavam lhe comprar a consciência.
O tinhoso foi astuto e adiantou-se,
Anotando o nome "João" em seu caderno.
Disse: "Moço, a sua alma já danou-se.
Em seu tempo, descerá para o inferno.
Pois não pense que esse mal será esquecido
Só por não ter sido, a queda, sua vontade.
O motivo desse homem ter morrido
Foi por seu desleixo e incapacidade."
Já o anjo, que escutava do outro lado,
Quando pôde, não tardou em responder
"Pobre irmão, não fique assim tão preocupado!
Pois o céu recebe a quem se arrepender!
Esse outro que te fala com desdém
Não conhece o céu nem nada que é sagrado.
Nossos anjos não desistem de ninguém
Por maior que tenha sido o seu pecado."
Do velório, João correu, bravo e veloz
Pois aquilo o fez ficar descontrolado.
Não queria mais ouvir nenhuma voz
Já que o padre é que foi tolo e descuidado.
João sabia que não tinha feito nada
Que pudesse lhe impedir de se salvar.
E, afinal, se houvesse culpa na empreitada,
Só Jesus tinha o direito de julgar.
Mesmo tendo convicção de não ser mau
João se viu sozinho, triste e sem vigor.
Só queria ter de Deus algum sinal
Que o mostrasse que ele tinha o seu valor.
O Senhor sempre responde a toda reza
Mesmo quando se demora sua mensagem.
Se o divino o amor do homem não despreza,
Tanto mais quando ele mostra a sua coragem.
Foi assim que João ouviu seu acalanto,
Tal e qual como se fosse uma cantiga.
Viu a imagem, que levou seu peito ao pranto,
Do vigário lhe estendendo a mão amiga.
“Não se aflija com o que dizem seus vizinhos,
Pois Jesus enxerga toda a sua bondade.
Seu passado está em santos pergaminhos.
Nada ocorre se não for, de Deus, vontade.”
O vigário, lhe abraçando, o consolou
Concluindo sua fala sábia e mansa:
“João, amigo, tudo o que passou, passou.
Nunca perca a sua força e esperança.
Jesus disse: ‘Faça tudo pelo pobre!’
De você não poderia guardar mágoa.
Mais que eu, que fui vigário, foste nobre
Ao levar ao sertanejo limpa água.”
Enxugando o rosto e já revigorado,
João voltou andando sob um fino orvalho.
Logo após o padre ter sido enterrado,
Foi ao poço terminar o seu trabalho.
Quem passava ali por perto questionava
Se o caboclo deveria ser punido.
Mas o moço, quando ouvia, nem ligava.
Só queria ver o seu dever cumprido.
Toda noite, com a cabeça ao travesseiro,
João rezava pelo padre, seu mentor.
As palavras do vigário conselheiro
Ensinaram-no a doar-se com amor.
João viveu por muitos anos nessa luta,
Trabalhando com atenção e honestidade.
Quando a morte interrompeu sua labuta,
Nem lembravam do vigário na cidade.
A lição que ele deixou aos descendentes
Só não foi maior que o bem que ele plantou.
Nunca mais causara morte ou acidentes,
E, no céu, por todo o sempre, descansou.
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