Edmilson Ferreira - Escritor
Devo Estar Ficando Louco
É segunda-feira.
Acordo cedo. Olho ao redor. Meu quarto está diferente do que me lembrava. As janelas não deixam entrar muita luz, mas o relógio já marca sete horas. Os pássaros cantam, mas é difícil ouvi-los. Abro as cortinas e entendo o porquê. Há fortes grades do lado de dentro e grossas madeiras pregadas do lado de fora. Começo a me recordar do que aconteceu.
O mundo mudou. Naves alienígenas pousaram em todas as grandes cidades e dominaram a população. Aqueles que se rebelaram foram mortos. Os mais espertos fugiram e se esconderam em lugares menos povoados. É por isso que estou aqui, em um sítio afastado de tudo, rezando para que eles não me achem. Abro as cinco trancas da porta e saio para pegar um pouco de água no poço. Enquanto giro o sarilho, escuto um barulho de motor, distante no céu. Apresso-me em encher o balde e voltar para dentro. Tranco tudo novamente, rezando para que ninguém perceba que estou aqui.
Confiro a despensa. Ainda há muito suprimento: farinha, óleo, cereais, carne de sol… Respiro fundo para me tranquilizar. Ligo o rádio, não há transmissão em nenhuma estação. Desligo-o. Passo o resto do dia pensando na vida: “Como foi possível deixarmos chegar a este ponto? Será que não havia mesmo algo que pudesse ser feito para evitar tudo isso?” A noite vem. Enquanto tomo uma xícara de chá, lembro-me de mais uma coisa. Um detalhe importante! Eu tinha um amigo, a quem via regularmente. Apenas alguns detalhes me vêm à mente, como, por exemplo, o fato de ele sempre vestir branco. “O que terá acontecido? Qual era mesmo o nome dele? Será que ele existe de verdade?” Não consigo encontrar respostas para minhas perguntas. Talvez, no fundo, eu esteja apenas ficando louco.
É terça-feira.
O sol brilha em minha face, fazendo-me despertar. O quarto está plenamente iluminado. Levanto-me e fecho as cortinas. Alguma coisa me incomoda. Talvez, tenha sido o sonho da noite anterior. Começo a me lembrar: foi como se o mundo tivesse sido invadido e dominado por extra-terrestres ou algo do tipo. A mim, pareceu muito real, mas é claro que isso não poderia ser possível. Abro a porta e encontro a mesa posta para o café, mas não há ninguém aqui. Sento-me, faço meu desjejum. Levo as louças para a cozinha e tento sair para o quintal, mas a porta dá para o quarto onde eu dormi. Vou ao banheiro, faço minhas necessidades, lavo bem o rosto e retorno para a cozinha. Os pássaros estão cantando lá fora, isso dá para escutar bem. Fecho os olhos e saio pela porta. Respiro fundo. Ah, que ar fresco! Ar puro e limpo numa bela manhã no campo. Abro os olhos e vejo meu quarto, com o ventilador ligado, virado para mim.
Sento-me na cama. Está tudo tão confuso! Na minha cabeça, surge uma imagem que me traz certa tranquilidade. O meu amigo, aquele que só veste branco, costumava me receber em seu trabalho. Eu gostava muito de conversar com ele! “Como é mesmo o seu nome?” Esforço-me para lembrar. É inútil. Saio correndo do quarto, atravesso a cozinha e dou com o pé na porta, que é atirada com violência contra a cômoda do quarto. “Aqui estou eu, novamente. Não tenho saída.”, penso comigo mesmo. Sinto-me indefeso. A certeza de que não há nada que eu possa fazer me domina totalmente. Não faz sentido continuar tentando. Estou em uma prisão, sem nenhuma possibilidade de fuga. Sentado no canto do quarto, coloco a cabeça entre os joelhos e fico balançando para frente e para trás, por horas a fio. Apenas um pensamento permanece em minha mente: “Acho que estou ficando louco.”
É quarta-feira.
Mãos suaves me acariciam os braços, fazendo-me acordar. A luz do dia ofusca minha visão, de modo que não consigo identificar quem está ali comigo. Sei que é uma mulher. Ela me leva para fora do quarto, e depois em direção à porta da cozinha.
⸺ É inútil! ⸺ exclamo, em protesto, tentando me livrar de seus braços.
Mas, de repente, vejo-me pisando na grama fresca, cercado de árvores e de outras pessoas. Estou completamente impressionado com a paisagem! É a vista mais linda que alguém poderia ver! Campos verdes se estendem por quilômetros, terminando em algo que parece um domo de vidro. Olho para cima e quase caio para trás, de surpresa e encantamento. A Terra, nosso lindo planeta azul, está logo ali, enfeitando o céu do lugar onde estamos. Minha cabeça gira cada vez mais rápido. “O que será isso?”, penso. “Uma estação espacial? Uma cidade inteira em órbita? É claro que não! Isso não tem o menor cabimento!” De qualquer maneira, continuo vendo-a no céu: A Terra, linda, brilhante, encantadora. Ela permanece ali, como se estivesse nos abençoando com sua presença, até o entardecer. Por mais absurda que a visão possa parecer, aceito-a como minha realidade, pois apenas ela está ao meu alcance.
O sol desaparece por trás da curvatura azul do meu planeta natal. No mesmo momento, minha companheira retorna para me levar ao quarto. Meu desejo é sair caminhando e ir conhecer o restante da estação espacial (ou o que quer que este lugar seja), mas, estranhamente, não apresento nenhuma resistência à minha guia. Estou completamente domesticado. Ao despedir-me da mulher, vejo de relance alguém que me traz certa sensação de felicidade. É o meu amigo, mas a moça fecha a porta antes que eu possa chamá-lo. “Diógenes! É claro! O nome dele é Diógenes!”. Estou feliz por ter me lembrado. Que bom que ele também está aqui no espaço. Pelo menos, terei a oportunidade de revê-lo e, quem sabe, conversar novamente. Porém, sinto que alguma coisa ainda está muito errada. Como viemos parar aqui? Ontem mesmo eu estava em casa… bem… não na minha casa. Mas era um lugar bom, aconchegante, apesar de eu não conseguir sair pela cozinha. Será que eu estou mesmo no espaço? Acho que estou ficando louco.
É quinta-feira.
Antes do amanhecer, meus olhos já estão completamente abertos. O sono me abandonou totalmente. Quando começa a clarear, vejo uma mariposa pousada no teto, exatamente acima da minha cabeça. Fico olhando fixamente para ela, como se estivéssemos em uma competição de quem desvia o rosto primeiro, mas mariposas não têm rosto, é claro. Apesar de ser inútil a disputa, permaneço imóvel, esperando qualquer reação do pequeno inseto. A porta se abre e eu me distraio. “Droga! Perdi!” Amaldiçoo mentalmente a mariposa e levanto-me para ir comer alguma coisa. Lá fora, assim como no cômodo onde eu dormi, todas as paredes são brancas. Nada disso é como eu me lembrava. Lentamente, caminho até a cadeira mais próxima.
Na mesa do café, ainda chateado por ter saído da despropositada competição, vejo Diógenes de pé na porta de seu quarto. Ele me cumprimenta e faz um gesto, convidando-me para ir até ele. Engulo o último biscoito e vou ao seu encontro. Acho que ele não mora aqui, pois seu quarto é diferente. Não tem cama, apenas uma mesa e duas cadeiras. Sento-me em uma delas.
⸺ Como o senhor está hoje? ⸺ ele diz.
⸺ Estou bem … Dió… ⸺ respondo, mas sem completar a frase.
Não sei por quê, sinto enorme dificuldade em tratá-lo pelo nome.
⸺ Doutor ⸺ ele completa, como se corrigisse o que eu tentava dizer.
⸺ Estou bem, doutor ⸺ repito, vagarosamente, mas mostrando um pouco mais de confiança.
Seu rosto amigo, seus minúsculos óculos e sua roupa branca trazem lembranças frescas à minha mente. Sim, ele me recebe regularmente em seu trabalho. E é sempre muito bom conversar com ele.
⸺ Gostaria de falar sobre alguma coisa, especificamente? ⸺ pergunta o doutor.
“Sim, é claro! Há milhares de coisas que eu gostaria de falar! Não sei mais o que é real ou o que é imaginação! Preciso falar para alguém sobre o que penso, vivo e sinto. Eu sofro com isso todo o tempo! Se eu não conseguir botar para fora, com certeza essas coisas vão virar um câncer ou algo pior!”, penso comigo mesmo. Abro a boca para dizer essas palavras, mas não sai nada. O doutor continua a me observar, esperando uma resposta à sua pergunta.
⸺ Não tenha pressa ⸺ diz ele, quebrando o silêncio.
Fecho a boca. Sei que é inútil permanecer aqui. Dou um sorriso, levanto-me da cadeira e viro-me para sair. O doutor me segura, gentilmente, pelo braço e eu olho em seus olhos.
⸺ Eu quero muito ajudar ⸺ diz ele. ⸺ Você não precisa sair agora. Ainda temos tempo. Vamos conversar?
Instintivamente, deito a cabeça em seu ombro e me debulho em lágrimas. Há muitas coisas que eu quero dizer, mas consigo repetir apenas três palavras:
⸺ Está tudo errado! Está tudo errado!
Depois de vinte minutos abraçado ao doutor, meu choro termina. Limpo meu rosto com os lenços de papel da mesa dele e agradeço-o com a cabeça. Abro a porta e vou para meu quarto. A mariposa já não está no teto. Mordo o lábio inferior e deito-me na cama, esperando que o dia acabe. Ou o mundo.
É sexta-feira.
Sem que ninguém venha me acordar, levanto-me e vou para o refeitório. Enquanto tomo leite morno com rosquinhas, olho pela janela e vejo uma fumaça escura saindo de uma grande chaminé. Várias lembranças vêm à minha mente, inclusive como cheguei aqui.
O mundo lá fora tinha se tornado inabitável. Para mim, era impossível viver naquela anarquia. Ninguém se importa mais com ninguém. A violência está tomando conta das ruas e as autoridades não dão a mínima. A televisão diz que vivemos em uma democracia, mas a vontade do povo não é, nem de longe, respeitada. As leis são distorcidas para favorecer aos poderosos, e há preconceitos explícitos sendo escancarados em todos os meios possíveis, pelas mais variadas classes de pessoas. Os direitos do indivíduo expressos na Constituição viraram piada. Os políticos não escondem mais suas falcatruas, pois perderam completamente a vergonha de se mostrar como realmente são. Apesar de tudo isso, os cidadãos não fazem nada para mudar coisa alguma no país. Nem se dão ao trabalho de se organizar para melhorar a vida das próprias comunidades. Os poucos que tentam agir são rotulados de sonhadores e ridicularizados pelos que estão ao seu redor.
A maioria dos templos religiosos é comandada por pessoas que não seguem a palavra que pregam. O único propósito é acumular mais e mais recursos, enganando o maior número possível de pessoas. A cegueira dos seus seguidores é tanta que qualquer conselho dado por alguém mais esclarecido é tido como heresia.
Esse é o mundo do qual eu fugi. Se é que ele existe (ainda tenho dúvidas). Há momentos em que não consigo definir o que é real e o que faz parte da minha imaginação. Se fosse assim mesmo, por que ninguém faz nada para mudar? Por que todo mundo é tão apático? Estou confuso. Preciso descansar. Volto para meu quarto e espero o dia passar. Todos os dias passam.
Meus pensamentos estão a mil. Não é possível que tudo isso seja verdade! Durante horas, fico caminhando de um lado para outro, até me cansar e deitar na cama para dormir. Às vezes, acho que eu é que sou o problema. Que tudo é minha culpa.
Não! Não pode ser isso. No fundo, devo mesmo estar ficando louco.