Edmilson Ferreira - Escritor
O vento soprava forte numa fria manhã de domingo. Apesar de ainda estar muito cedo, os olhos serenos do senhor Arnaldo já estavam bem abertos. Preocupado com o que havia de acontecer naquele dia, ele despertou às cinco da manhã e não conseguiu mais dormir. Um nítido pressentimento o torturava, corroendo seu interior, sem pausa, sem descanso, mas sem pressa. Não restava nenhuma dúvida em sua mente: aquele era o dia em que seria levado para sempre deste mundo.
Pensando ser inútil lutar contra seu destino, decidiu se levantar. Tomou um demorado banho quente, vestiu o confortável roupão, preparou seu café, como era de costume, bem doce e não muito forte. Serviu-se de pão de queijo com manteiga, enquanto a bebida esfriava um pouco. Por fim, esvaziou lentamente a xícara de porcelana decorada, tentando imaginar como passaria seus últimos momentos sobre a Terra. Não sentia medo, propriamente dito. Apenas estava preocupado com o que viria a seguir, se é que existia alguma coisa depois do túmulo. Sabia que não valia a pena ficar ruminando as incertezas e tinha a consciência de que sua longa vida, que até aquele momento já durara noventa anos, fora bem aproveitada, na medida do que lhe foi possível.
Quando o sol estava um pouco mais alto, levantou-se da mesa e foi se trocar. Já que aquele seria seu último dia, quis vestir-se adequadamente para a ocasião. Colocou seu terno de linho preto e sua gravata azul com finas listras brancas. Ao pegar seus sapatos preferidos, viu que eles precisavam de um pouco mais de brilho. Procurando a flanela, já preta de tanta graxa, imaginava qual seria a face do mensageiro que viria recolher sua alma.
O senhor Arnaldo sabia que a Morte não era uma senhora com rosto de caveira, de manto negro e capuz. Certamente também não traria nenhuma foice nas mãos. Na verdade, desconfiava que não seria uma figura feminina, mas um homem vistoso com cara de político em tempo de eleições. Mostrava-se inquieto. Quais palavras usaria para conversar com o “Arauto da Última Hora”? Sentou-se por um momento na cama. Quanto tempo faltava para a chegada da ilustre visita? Preocupou-se em estar apresentável o suficiente para encarar o “mensageiro” de cabeça erguida. Levantou-se. Revirou a gaveta de meias. Mas o velho pano de lustrar não estava em nenhum canto do quarto. Assim, o sereno senhor recolheu os sapatos e caminhou lentamente até a sala. Tomou um baita susto ao ver um homem alto, parado de pé junto ao sofá.
Em poucos segundos, Arnaldo o examinou cuidadosamente. Ele estava vestido elegantemente, com seu colete de tricô e camisa social. A calça vincada sem nenhum amarrotado e os sapatos... ah, os sapatos... muito mais brilhantes do que os dele, o que fez o ancião engolir seco. Os cabelos, levemente grisalhos, estavam impecavelmente penteados para trás. Trazia em um dos pulsos um grande e redondo relógio, no qual o moço fez questão de registrar as horas em que o velho adentrou no cômodo.
— Bom dia! — disse o visitante, com voz grave.
— Eu não o esperava aqui tão cedo — respondeu o idoso, enquanto se sentava para calçar os sapatos foscos.
A súbita presença o incomodava um pouco, mas ele não demonstrava seu desconforto.
— Deixe-me ajudá-lo! — ofereceu-se o mais jovem.
Não muito satisfeito, o senhor Arnaldo permitiu que o outro lhe colocasse o calçado nos pés. Ele não esperava tal gentileza daquele “mau agouro ambulante”, pois sabia muito bem o motivo daquela visita.
— Então… é mesmo você quem veio me buscar? — perguntou ele.
O homem sorriu e, quando terminou de amarrar-lhe os cadarços, respondeu:
— Não vim lhe causar nenhum mal. Apenas vamos dar um passeio. O senhor sabe quem eu sou?
— Sei quem você é, mas não tenho medo. Não fico impressionado como as outras pessoas, portanto não pense que vou me humilhar nem implorar pela vida. Entendo que tudo tem um fim e acho que meu tempo aqui já foi mais do que suficiente.
— Se acha que me conhece, tente, por favor, dizer meu nome.
— Não ouso dizer seu nome, até porque isso lhe daria certa autoridade. Mas entendo sua missão, então vou dizer apenas que você é “O Inevitável”.
— Está certo, senhor Arnaldo — afirmou o homem, sorrindo enigmaticamente. — Podemos ir agora?
— Como queira! — respondeu o velho, ajeitando o colarinho e fazendo questão de mostrar seu orgulho.
Os dois atravessaram a porta e se viram em um belo jardim, com flores vermelhas e arbustos bem cuidados. Caminharam por alguns minutos, em silêncio, na calçada pavimentada de uma rua onde não passavam carros.
— Quando é que você vai… você sabe, fazer essa coisa que veio fazer. Digo, quando vai me levar?
— Fique calmo, senhor Arnaldo. Já estou cumprindo minha missão aqui. Estou me saindo melhor do que esperava, inclusive.
— Então, eu já morri? Isso é o que tem no além?
Com o semblante maravilhado, o velho senhor olhou em volta. Notou pássaros cantando, árvores balançando com o vento e ouviu o som de crianças brincando ao longe. Os raios do sol brilhavam entre as folhas de ipês e coqueiros, produzindo um efeito nunca visto, nem nas melhores fotografias.
— Não me parece muito diferente do mundo terreno — resmungou Arnaldo. — Pensei também que, quando fizesse a passagem, teria um corpo mais jovial. Com este aqui, nem consigo caminhar direito!
O homem que o acompanhava sorriu largamente.
— O que o senhor está vendo é apenas o condomínio onde fica sua casa — disse ele. — Eu não vim tirar sua vida. Como expliquei anteriormente, estamos apenas fazendo um breve passeio. Em poucas horas, o senhor estará novamente em seu quarto, descansando e se preparando para o dia de amanhã.
— Você não me engana! — retrucou o velho Arnaldo. — Tenho certeza de que meu dia é hoje! Se não for você o mensageiro, outro será!
Chegaram os dois a uma praça e sentaram-se para descansar. No banco à frente, outro senhor jogava comida de pássaro para os famintos pombos que o cercavam. Como amigos, o velho e o jovem senhor comentavam sobre as histórias de tempos idos. Um falava da Grande Guerra, outro de gandaias durante a faculdade. Sem que percebessem, horas se passaram e o almoço já começava a ser servido nas casas da redondeza. Levantaram-se e caminharam de volta, vagarosamente, silenciosamente e com certa sensação de leveza.
Ao chegar à porta de casa, Arnaldo foi recebido por uma senhora de meia idade, vestida de branco. Do lado de dentro, um leve aroma de carne assada e batatas cozidas inundava agradavelmente o ambiente. Antes de se despedir, o idoso sorriu para o homem grisalho e agradeceu pela companhia durante a agradável manhã.
— Até outro dia, então! Afinal de contas, parece que ainda não chegou a minha hora — deduziu ele.
— Isso mesmo, senhor Arnaldo. O senhor ainda tem muito a nos ensinar.
— Que nada! — respondeu o velho. — Como eu disse, meu tempo já passou. Quando você menos esperar, já terei ido.
— O senhor não consegue tirar isso da cabeça, não é?
— Você ainda vai me dar razão — afirmou Arnaldo, com autoridade. — Como é mesmo seu nome, rapaz?
— Lúcio.
— Lúcio! Que coincidência! Sabia que tenho um filho com esse nome? — disse o velho, buscando na memória uma lembrança quase esquecida. — Sempre que quiser, você pode aparecer, meu caro rapaz. Eu te receberei com muito prazer, viu?
— Pode deixar! Estarei aqui amanhã, no mesmo horário!
— Tenha uma boa tarde, Lúcio!
— Você também, pai.
(*Fim*)
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