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Rosalinda e o Lobo

Atenção: CONTO NÃO RECOMENDADO PARA CRIANÇAS E PESSOAS SENSÍVEIS

     Rosalinda era uma porquinha muito prendada. Vivia sozinha em sua singela casa de pau a pique, que ficava à beira do Bosque das Flores. A moradia era simples, mas era forte o suficiente para protegê-la dos perigos da floresta.

     A porquinha estava cantarolando uma valsa e fazendo seu almoço - uma panelada de arroz à grega com legumes frescos e salada - quando ouviu uma carruagem se aproximar. Como não esperava visita naquele dia, preocupou-se, visto que a vasta refeição que preparava seria suficiente apenas para satisfazer sua enorme fome e encher sua redonda pança, dando-lhe um tempo de saciedade até que pudesse colher alguns frutos no bosque, para o lanche da tarde, e outras coisas para a ceia. 

     A carruagem parou em frente à sua porta. Rosalinda deu um suspiro, tampou a panela e foi até a sala, com o focinho emburrado, para ver quem tinha vindo lhe visitar. Ajeitou o avental, abriu a porta de madeira e viu um coelho de smoking sentado na parte da frente, segurando as rédeas do vistoso cavalo branco. Sob o olhar desconfiado da porquinha, o condutor apenas acenou com a cabeça, levantando brevemente seu chapéu. A porta da carruagem se abriu e, de dentro, saiu um animal de terno preto e sapatos bem lustrados. O rabo peludo sacudiu algumas vezes de lado a lado enquanto a importante figura pegava suas coisas no assento. Demorou um pouco para que o visitante virasse de frente. A porquinha apertou os olhos para ver quem era aquele e por que teria vindo à sua casa, sem aviso e sem ser convidado.

     — Aaahhhhh! — gritou ela, ao ver que era um lobo.

     Rosalinda correu para dentro e bateu a porta antes que ele dissesse qualquer coisa. Trancou bem as janelas, passou uma grossa madeira sobre elas e empurrou a pesada mesa de jantar, até que a maçaneta da entrada ficasse bem presa. O visitante deu três batidinhas, bem de leve.

     — Bom dia! — disse ele.

     — Vá embora! — respondeu a assustada porquinha.

     — Tenho uma carta para você! — insistiu o lobo.

     — Não quero saber! — gritou Rosalinda. — Vou ficar aqui dentro, onde estou segura, e não vou abrir a porta para nenhum Lobo Mau!

     — Ora, ora… — disse o visitante. — Quem disse que sou mau?

     — Um lobo batendo à minha porta não pode ser nada que preste!

     — Minhas humildes desculpas, cara porquinha! — falou o lobo, polidamente. — Temo que a reputação de meus antepassados tenha feito muito estrago por estas bandas. Eu não sou como os lobos de antigamente. Tenho a melhor das intenções, apesar de ter cometido o grave erro de aparecer sem avisar.

     — Desculpas aceitas, passar bem! Até logo! — gritou Rosalinda, na esperança de que ele não insistisse mais.

     — Ainda não posso ir embora — declarou o insistente visitante. — Como disse, tenho uma carta para você.

     — Carta? — perguntou a porca. — De quem seria essa carta?

     — Da sua avó.

     — Minha avó? — desesperou-se Rosalinda. — O que você fez com ela, seu covarde?

     — Tomei um chá agora há pouco.

     — Como?

     — Foi isso que fiz. Tomei um chá com ela, agora há pouco, antes de vir para cá. Ela me pediu que lhe entregasse esta carta.

     Rosalinda olhou pela fresta da madeira e viu que o lobo segurava um envelope decorado com flores de vários tipos e cores, exatamente iguais às de outras cartas que recebera anteriormente de sua avó, Maria Rosa. Seu coração quase saltou do peito. Temia pela segurança da velhinha e pela sua própria. Não queria dar nenhuma chance ao lobo para que pudesse capturá-la, mas precisava saber o que estava escrito na carta. Pensou, pensou e, depois de muito pensar, teve uma ideia.

     — Se é tão importante assim me entregar essa carta, peça ao seu chofer para trazê-la!

     — Já que insiste… - concordou o lobo.

     Com um assovio, ele chamou seu empregado e entregou-lhe o envelope.

     — Espere lá na carruagem! — disse Rosalinda, em tom de ordem.

     O lobo consentiu, fez uma reverência e se afastou. Encostou em seu carro e ficou lá aguardando. O coelho parou em frente à entrada, com cara de paisagem, até que a dona da casa decidisse atendê-lo. Depois de alguns instantes, a porquinha retirou a barricada, abriu a porta e puxou o chofer para dentro, fechando-a novamente com uma rapidez incrível. Arrancou a carta das mãos dele e começou a ler.

     — “Minha querida neta, bom dia! Você não imagina a surpresa que tive hoje de manhã, ao receber a visita do senhor Lupinício.” — Rosalinda virou-se para o coelho, que ainda estava de pé na sala, totalmente desconfortável. — Lupinício?

     — Esse é o nome do meu patrão — disse o chofer, mostrando-se cortês.

     A porquinha apontou uma cadeira ao seu acompanhante, que sentou-se e permaneceu quieto, em silêncio, como se a dona da casa fosse sua mestra. Ela, então, continuou a leitura.

     — “Os dias estão tão mudados, minha netinha. Se fosse na época em que eu era nova, nunca acreditaria que um lobo pudesse ser tão prestativo e educado. Ele me trouxe frutas de seu pomar e outras coisas que comprou no mercado da vila. Sentamos juntos à mesa e tomamos um gostoso chá, enquanto ele me explicava como funciona sua vida moderna. Rimos muito! Convidei-o a voltar outros dias, para termos novamente esses agradáveis momentos juntos. Espero vê-la em breve! Com carinho, Maria Rosa.”

     A porquinha ficou aliviada em saber que sua avó não tinha sofrido nenhum mal. Deu um longo suspiro, segurando a carta junto ao peito, com os olhos cheios de lágrimas.

     — Obrigado! — disse ela ao coelho.

     — Disponha — respondeu o outro, sem sair de seu lugar.

     — Agora, já pode ir — informou Rosalinda.

     — Não vem conosco? — perguntou o chofer.

     — Para onde?

     — Ai, ai, ai… — lamentou o coelho. — Era o meu senhor quem deveria ter lhe contado. Estraguei a surpresa.

     O orelhudo animal levantou-se, assustado, e correu para a porta. Rosalinda impediu-lhe a passagem e segurou-o pelos braços.

     — Do que você está falando?

     — O senhor Lupinício quer convidar você a ir ver sua avó. Aposto que ela vai adorar sua visita!

     — O que faz você pensar que vou sair por aí com um lobo? — perguntou a porquinha, com os olhos arregalados.

     — Você ainda não entendeu — disse o coelho. — Para os lobos, não existe mais essa coisa de sair correndo atrás de animais pelo bosque ou invadindo casas pelas chaminés. Você acha que eu estaria vivo se o senhor Lupinício ainda fizesse isso?

     Rosalinda soltou os braços do pequeno animal.

     — Pensando bem, faz sentido. E o que ele come?

     — Coisas que compra no mercado, além de outras que pega por aí. Frutas, verduras. Veja!

     Os dois espiaram pela fresta da porta e viram o lobo dando umas boas bocadas em um talo de alho-poró.

     — Mas ele é um animal carnívoro! — advertiu a porca, num cochicho quase inaudível.

     — Sim, mas existe uma charcutaria do outro lado da vila. Vendem todo tipo de imitação de carne processada, industrializada, assada ou cozida. Quando ele quer, é lá que arruma os petiscos para acalmar seus desejos. A modernidade está aí para ser aproveitada!

     — Charcutaria? — espantou-se Rosalinda. — Mas como eles fazem essas coisas?

     — Eu não faço ideia! — respondeu o chofer. — Mas desde que eu não vire almoço, para mim está tudo certo! Eu sempre levo meu senhor lá para comprar essas coisas.  Em vez de porcos, galinhas ou coelhos, ele só come tortas, espetos, salsichas… tudo preparado para parecer real. Você devia ver os bifes! Tenho arrepios de tão semelhantes que eles são aos de carne de verdade!

     — Que horror! — declarou a porquinha.

     — Mas é tudo fabricado. Não temos que ficar pensando nisso — declarou o coelho.

     — Ainda assim, é de causar espanto! — respondeu Rosalinda. — Além do mais, nada nos garante que continuaremos seguros.

     — Bem, eu ainda estou aqui, não estou? — tranquilizou-a o chofer.

     — É verdade — disse a porquinha, mostrando certo alívio.

     — Então, você vem? — insistiu o coelho.

     Rosalinda ainda estava um pouco assustada. Sentia-se insegura para sair, mas não se sentia melhor ficando ali, sozinha, em sua casa. Queria muito ver sua avó e, quem sabe, chorar um pouco em seu colo, para desabafar. Não conseguia se decidir se era melhor ir ou ficar. Depois de muito pensar, disse:

     — Vou até a casa dela mais tarde… ou quem sabe amanhã.

     — Não é seguro sair por esse bosque à noite, e amanhã não tem trem — informou o coelho. — É domingo, lembra?

     — Mas não quero ir na carruagem desse lobo!

     — Isso é preconceito! — disse Lupinício, que havia chegado mais perto e estava escutando atrás da porta. Rosalinda deu um grito e um pulo para trás. O lobo continuou: — Não precisa temer! Se eu quisesse, já teria entrado aí. Você se esqueceu de trancar a porta!

     Dizendo isso, girou a maçaneta e colocou seu grande focinho e as orelhas peludas para dentro da casa da porquinha. Rosalinda estremeceu e escondeu-se atrás do coelho.

     — Não se preocupe, ele não vai lhe fazer mal! — declarou o chofer.

     — Estou aqui para lhe fazer um favor — disse o lobo. — Podemos deixar você com sua avó antes do entardecer. Não será nenhum incômodo, nem teremos de desviar do caminho.

     A porquinha olhou nos olhos do coelho, como se esperasse um endosso do animalzinho ao que o chefe acabara de dizer.

     — Eu prometo — disse o chofer — que levaremos você em segurança até sua avó. Ou você pode cortar minhas orelhas!

     — Mas eu estou acabando de fazer o almoço! — lamentou Rosalinda.

     — Nós esperamos — declarou Lupinício, entrando sem ser convidado e sentando-se no sofá.

     Depois de servir um pratinho minúsculo para o coelho, a porquinha colocou tudo o que restou da panela em uma grande tigela e devorou tudo num instante. O lobo não quis provar do almoço, com a desculpa que estava de regime e só comeria à noite. Rosalinda estava muito desconfortável com a presença do lobo, mas isso não tirou seu apetite. Antes de saírem, ela ainda comeu duas maçãs e uma metade de mamão que haviam sobrado de seu desjejum. Colocou seu chapéu e, segurando firme no braço do coelho, disse ao lobo:

     — O senhor primeiro!

     — Ai, ai… — resmungou Lupinício. — O que preciso fazer para provar que sou civilizado?

     Depois que o dono da carruagem embarcou, Rosalinda e o coelho saíram da casa.

     — Posso ir com você, lá na frente? - perguntou a porquinha, ainda receosa.

     O chofer olhou para seu patrão, como quem pedisse permissão para responder, ao que o lobo assentiu com a cabeça.

     — Será meu prazer! — disse o coelho, ajudando Rosalinda a subir.

     Antes de partirem, o lobo colocou a cabeça para fora da carruagem e atirou uma moeda de prata para seu empregado, que a pegou no ar e guardou-a no bolso do paletó.

     — Vamos devagar — disse o patrão — para podermos aproveitar a paisagem!

     Depois de alguns minutos, a trote lento, a porca já estava ficando mais tranquila. O simples fato de não ver o lobo (que estava na parte fechada da carruagem) trouxe mais confiança a ela. O caminho lhe era bastante familiar. Faltavam alguns quilômetros apenas para chegar à casa de dona Maria Rosa. Seu chapéu tinha uma fita de cor amarelo vibrante, a qual segurava-o bem preso à cabeça dela, pois de outro modo ele já teria voado, visto que ventava bastante. Não demorou para começar a chuviscar. Lentamente, as gotas foram ficando mais grossas, até que a chuva fina se transformou em um temporal.

     — Vá lá para dentro! — gritou o coelho, entre as rajadas de vento e trovões.

     — Mas ele está lá! — disse, receosa, a porquinha.

     — Não acredita na minha promessa? — insistiu o chofer. — Você vai ser levada em segurança até sua avó! Eu juro!

     Um relâmpago acendeu o céu como se todas as nuvens formassem uma enorme lâmpada incandescente. Em meio segundo soou um trovão que estremeceu o chão e fez o cavalo saltar de lado. O medo que Rosalinda teve da tempestade superou o que ela tinha do lobo, e ela resolveu entrar.

     — Tome aqui! — disse Lupinício, oferecendo-lhe uma toalha. — Há muito tempo não vejo uma chuva como esta.

     — É… — concordou Rosalinda, apenas para não parecer mal-educada.

     — Então… — disse o lobo, tentando acalmar a tensão. — fale-me sobre você! O que você faz da vida?

     Rosalinda não respondeu.

     — Sua avó me contou que você borda, é verdade? — perguntou o lobo.

     A porquinha apenas acenou com a cabeça.

     — Esse chapéu, foi você quem fez?

     — Sim — respondeu Rosalinda, timidamente.

     — É muito bonito.

     — Obrigada — disse a porca. — E o senhor?

     — Eu o quê? — perguntou o lobo.

     — O que faz para viver?

     — Bem… é difícil dizer… — esquivou-se Lupinício, desviando o olhar.

     — Já que o senhor disse que leva uma vida moderna, tem que se ocupar de algo, não?

     — Sim, claro! — respondeu o lobo, sem graça. — Mas é difícil explicar… Faço umas coisas aqui, outras ali. Tenho um empreendimento que, até o momento, tem dado bastante lucro. Minha vida ficou bastante confortável e, como pode ver, tenho até empregados.

     — Onde é seu estabelecimento?

     — Trabalho muito no mercado da vila, mas a sede mesmo é do outro lado da cidade.

     Rosalinda notou certa ironia na voz do lobo. Deu um suspiro, engoliu seco e pensou se valeria a pena continuar a conversa. Mas quem continuou falando foi o lobo.

     — Em grosso modo, posso dizer que minha principal especialidade é no ramo alimentício.

     Nesse momento, passavam pela esquina que daria para a rua da casa de dona Maria Rosa.

     — É aqui que eu desço! — disse Rosalinda, exaltando-se e quase se levantando na carruagem em movimento.

     — Calma! — disse o lobo. — Sua avó não está ali. Ela vai encontrar você em outro lugar.

     — Seu lobo maldito! — disse a porquinha, começando a chorar. — Mentiroso!

     — Eu não disse nenhuma mentira! — declarou o lobo, com cara de satisfação. — Estou levando você em segurança até sua avó!

     — Por que está fazendo isso? — disse Rosalinda, aos prantos.

     — Não chore, venha cá! Se eu lhe der um abraço, você se sentirá melhor?

     — Como pode ser tão dissimulado?

     — Não sou dissimulado — declarou Lupinício —, engano seu! Meu trabalho é que é muito difícil! Requer uma técnica muito elaborada para não desagradar os clientes.

     Rosalinda não parou de chorar, mas encarou o lobo com uma expressão curiosa.

     — Como assim? — disse ela.

     — O nervosismo, a raiva, o choro, o medo, todas essas coisas ruins nos fazem muito mal — explicou o lobo. — Esses sentimentos refletem em todas as partes do nosso corpo, inclusive em nossa carne. Preciso evitar ao máximo esse tipo de tensão, caso contrário, o sabor será alterado e a mercadoria perderá a qualidade excepcional que é a minha principal característica no mercado.

     Rosalinda demorou alguns segundos para entender o que aquelas palavras significavam, mas quando compreendeu, chorou copiosamente e tentou fugir, mas foi em vão, pois sua força não era comparável à do lobo. Com expressão de total desapontamento, Lupinício deu duas batidas no teto da carruagem. O coelho abriu uma janelinha e pôs a cabeça para dentro para ouvir o que o patrão queria lhe dizer.

     — Pode ir direto! — disse o lobo. — Depois pegamos a velhinha.

     — Para sua charcutaria, senhor? — perguntou o chofer.

     — Sim — respondeu Lupinício. — E vá o mais rápido que puder! Minha mercadoria já está estragando!

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(*Fim*)

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